Patrimônio histórico
O patrimônio histórico'(pt-BR) ou património histórico(pt-PT?) (do latim "patrimonium", "pater familias": "bens do chefe de família", "legado") é um título conferido a um bem (móvel, imóvel ou natural) normalmente do passado, considerado valioso a um povo, uma sociedade, uma região, ou uma comunidade, com objetivo de preservar um legado para as gerações futuras.
O patrimônio dito histórico costuma estar interligado a um ou mais atributos, de natureza estética, cultural, artística, ambiental, social, simbólica, documental, científica, antropológica, religiosa, espiritual ou outros.
Etimologia
editarA noção de patrimônio é muito antiga. A palavra deriva do latim patrimonium, referindo-se ao conjunto de bens que pertenciam ao pater familias (o chefe de uma família) e que podia ser legado em herança.
Histórico
editarOrigem
editarEm suas origens romanas, o patrimonium era um apanágio da elite, já que somente a classe dominante possuía bens significativos. Era um valor aristocrático e patriarcal, e estava dentro da esfera do privado, sendo, contudo, embasado em tradições jurídicas, culturais e sociais.[1]
Mas de fato o interesse pela preservação de bens valiosos ou antigos é imemorial. O cuidado preservacionista de edificações importantes como templos e palácios, a cunhagem de medalhas e moedas comemorativas, a ereção de monumentos, a criação de pinturas e estátuas de governantes e personagens notáveis, a formação de bibliotecas e coleções de objetos preciosos ou raros, todas essas atividades de uma maneira ou outra tinham entre seus objetivos, desde a Antiguidade, legitimar e perenizar ações, conhecimentos, acontecimentos, lugares ou coisas, bem como a memória de pessoas, considerados relevantes para uma sociedade ou para determinados grupos sociais.[1]
Em algumas fases históricas o interesse pelo passado se tornou especialmente acentuado. Várias religiões do mundo desenvolveram toda uma cultura ligada a relíquias de santos e lugares sagrados; na Mesopotâmia inscrições antigas eram preservadas e copiadas para a educação dos jovens; imperadores babilônicos como Nabucodonosor II e Nabonido se dedicaram à coleção de antiguidades, e em sua época o principal templo de Ur mantinha um museu; na Grécia Antiga os templos geralmente eram também ricos depósitos de oferendas preciosas, que ocasionalmente eram expostas para o público; os romanos expunham coleções nos fóruns, jardins públicos, templos, teatros e termas; em Alexandria no tempo dos Ptolomeus foi criado um importante museu e a maior biblioteca da Antiguidade. Já na Idade Média do Ocidente, Carlos Magno outorgou leis destinadas a promover a preservação da herança romana; no Império Bizantino alguns imperadores organizavam exposições das coleções reais, e no Renascimento tudo que se referisse à Antiguidade Clássica foi valorizado e emulado, e nesta época o colecionismo ressurgiu com muito vigor, ao mesmo tempo em que iniciavam as primeiras pesquisas arqueológicas.[2][3]
Pouco depois surgiam os chamados "gabinetes de curiosidades", precursores dos museus modernos, onde eram acumuladas coleções muito heterogêneas de objetos de variada natureza e procedência.[4] Contudo, até o século XVII a maciça maioria das coleções permanecia como propriedade privada, acessível somente a uma reduzida elite, embora os monumentos permanecessem como instrumentos de preservação de valores específicos ao alcance do público em geral.[3] Em 1671 foi fundado em Basileia o primeiro museu universitário,[3] e em 1683 surgia na Inglaterra o Museu Ashmolean, o primeiro museu moderno destinado especificamente ao propósito de educar a população.[2] Com a Revolução Francesa, surgiram os primeiros programas estatais para preservação sistemática do acervo histórico e artístico nacional francês, e no século XIX, por influência do Romantismo, foi muito intensificado o interesse pela história, pela Antiguidade, pelos folclores regionais, dentro de um movimento de redefinição de identidades nacionais, enquanto os estudos eruditos ligados ao passado — arqueologia, história, antropologia, história da arte e outras — davam passos importantes para uma sistematização em larga escala a partir de critérios científicos e objetivos.[1][5] Neste período, até o início do século XX, podem ser destacados alguns nomes importantes para a evolução do conceito e das práticas conservacionistas, como Eugène Viollet-le-Duc, John Ruskin, Camilo Sitte, Gustavo Giovannoni e Camillo Boito.[6]
Contemporaneidade
editarNo início do século XX o entendimento do acervo de objetos, monumentos, documentos, edifícios e lugares relevantes do passado como um legado valioso a ser estudado e preservado já estava bem consolidado, sendo consagrados na Carta de Atenas de 1931 os conceitos básicos relativos ao reconhecimento, conservação e restauro do patrimônio histórico arquitetônico das cidades, um reflexo da consciência preservacionista em meio à renovação modernizadora que ocorria em muitas cidades, e que vinha acarretando demolições em larga escala de monumentos e edifícios antigos.[6]
Ao longo deste século surgiu uma série de organismos e sociedades com o objetivo precípuo de aprofundar os conceitos teóricos e estabelecer e normatizar linhas de ação prática para sua pesquisa, conservação, restauro e divulgação a partir dos conhecimentos mais atuais.[1] Destacam-se, neste sentido, a criação do Comité do Património Mundial da UNESCO em 1946, do ICOM (Conselho Internacional de Museus) no mesmo ano,[7] e do ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) em 1965. Segundo Jacques Le Goff, a partir da década de 1960 a conceituação atinge um elevado grau de densidade e seus atributos e objetos se expandem enormemente, quando "se passa de um patrimônio histórico a um patrimônio social; de um patrimônio herdado a um patrimônio reivindicado; de um patrimônio visível, material, a um invisível, imaterial".[5]
Hoje patrimônio histórico envolve uma ampla pluralidade de atributos e conceitos, cuja definição nem sempre é consensual, sendo o resultado de um diálogo e uma negociação entre diferentes setores da sociedade que muitas vezes disputam prioridades e ideologias. A questão é complexa, pois a definição do que constitui patrimônio e do que merece ser preservado é sempre uma reflexão de uma cultura sobre si mesma ou sobre outra cultura, sendo uma construção histórica datada, voluntária, seletiva e de certa forma arbitrária; muitas vezes é influenciada por fatores instáveis, como interesses particulares passageiros, o contexto político e as correntes de pensamento e as modas culturais sempre em mudança, ou pode se tornar instrumento de afirmação de poder e de perpetuação dos valores de um grupo social em detrimento de outro, podendo dar origem a ações conflitivas e violentas de supressão de memórias que não interessam ao grupo dominante.[5][8][9] Além disso, segundo Maria Cecília Fonseca, podem surgir tensões e conflitos "devido às concepções existentes no imaginário social e político que em muito se chocam com as concepções de estudiosos", e acrescenta que se o patrimônio não se insere e não desempenha um papel relevante na vida da comunidade, a elaboração e a aplicação de instrumentos legais, como o tombamento, não são suficientes para que um bem seja conservado no longo prazo.[10]
É evidente, portanto, que a construção e conservação do patrimônio histórico é um processo ativo e não passivo. No resumo de José Reginaldo Gonçalves, "o patrimônio pode ser compreendido como esse esforço constante de resguardar o passado no futuro; e para que exista patrimônio é necessário que ele seja reconhecido, eleito, que lhe seja conferido valor, o que se dá no âmbito das relações sociais e simbólicas que são tecidas ao redor do objeto ou do evento em si".[5] Para Ecléa Bosi, "na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual".[11]
Desde a década de 1960 o tema tem engajado o interesse de uma crescente parcela da população leiga, e segundo François Hartog isso se deve em parte a um recrudescimento na sua busca por suas raízes e memórias, que são erodidas diariamente diante das intensas e rápidas mudanças na sociedade global e nos cenários históricos aos quais as pessoas estavam acostumadas e aos quais estavam ligadas por diversos tipos de laços, incluindo os afetivos.[8]
Hoje são numerosas as cartas e convenções, bem como os institutos, sociedades e organismos internacionais e nacionais, que disciplinam o tema, que também é objeto de intensos debates e de uma volumosa bibliografia acadêmica. De modo geral o conceito permanece ligado à consciência da necessidade de conservar o legado do passado para o estudo e o conhecimento das gerações vindouras, sendo o patrimônio um elemento vital para a preservação de memórias, conhecimentos, significados, identidades, símbolos, sistemas de pensamento, modos de vida, tradições e valores.[5][8] A valorização do patrimônio também é considerada importante para a construção da cidadania, para a preservação dos laços sociais e para a elevação da qualidade de vida das comunidades,[12] está muitas vezes ligada à promoção dos direitos humanos, da democracia, da justiça social e do direito à informação, à memória e à produção e fruição cultural,[9][13] e pode se tornar importante fonte de divisas através de sua divulgação turística.[14]
Referências
- ↑ a b c d Carlan, Cláudio Umpierre & Funari Pedro Paulo A. "Patrimônio e colecionismo: algumas considerações". In: Revista Magistro, 2010; 1 (1)
- ↑ a b Lewis, Geoffrey. "O Papel dos Museus e o Código de Ética Profissional". In: Boylan, Patrick J. (ed). Como Gerir um Museu: Manual Prático. ICOM, 2004, pp. 1-2
- ↑ a b c Alexander, Edward Porter & Alexander, Mary. Museums in motion: an introduction to the history and functions of museums. Rowman Altamira, 2008, pp. 3-5
- ↑ McAllister, James. "The Virtual Laboratory". In: Schramm, Helmar; Schwarte, Ludger & Lazardzig, Jan. Collection, laboratory, theater: scenes of knowledge in the 17th century. Walter de Gruyter, 2005, p. 38
- ↑ a b c d e Ferreira, Maria Letícia Mazzucchi. "Patrimônio: discutindo alguns conceitos". In: Diálogos — DHI/PPH/UEM, 2006; 10 (3):79-88
- ↑ a b Almeida, Eneida de. O “construir no construído” na produção contemporânea: relações entre teoria e prática. Doutorado. Universidade de São Paulo, 2009, pp. 45-63
- ↑ ICOM. History of ICOM.
- ↑ a b c Rolim, Eliana de Souza. "Patrimônio histórico, memória, história e construção de saberes". In: XXVII Simpósio Nacional de História: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal, 22-26/07/2013
- ↑ a b Lima Filho, Manuel Ferreira. "Cidadania Patrimonial". In: Revista Anthropológicas, 2015; 19, 26 (2):134-155
- ↑ Maria Cecília Londres. "Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural". In: Abreu, Regina & Chagas, Mário. (orgs.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. DP&A, 2003, p. 56-76
- ↑ Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos, 3ª ed. Companhia das Letras, 1994, p. 55
- ↑ Paião, Cristiane. "Patrimônio histórico: uma questão de cidadania". In: ComCiência, 2010; 122
- ↑ Cruz, Heloísa de Faria. "Direito à memória e patrimônio documental". In: Revista História & Perspectivas, 2016; 29 (54)
- ↑ Camargo, Haroldo L. "Patrimônio e Turismo, uma longa relação: história, discurso e práticas". In: Patrimônio: Lazer & Turismo, mai/2005
Ver também
editarLigações externas
editar- IPHAN - Instituto do Patrimônio Histório e Artístico Nacional, Ministério da Cultura do Brasil
- IGESPAR - Divisão-geral do Património Cultural, Ministério da Cultura de Portugal
- International Council on Monuments and Sites — ICOMOS
- Programa Memória do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura