Não haverá outro goleiro como Ricardo Zamora
A tradição de goleiros espanhóis remonta a tempos antigos. Que Iker Casillas tenha se tornado o mais emblemático entre todos, ao levantar a Copa do Mundo de 2010, sua história foi construída na esteira de outras gigantes. Como as de Andoni Zubizarreta, Luis Arconada ou José Ángel Iribar. Porém, a legenda começa muito antes; em Barcelona, onde, em 14 de fevereiro de 1901, nasceu Ricardo Zamora Martínez.
Medicina não
Não havia motivos para arriscar a vida em um esporte cada vez mais popular, mas ainda amador e incerto. O clã Zamora, cujas raízes se vinculavam à Andaluzia e à Comunidade Valenciana, escolhera constituir e educar a família em Barcelona. Impulsionada pelo desenvolvimento industrial de setores como o têxtil, de eletricidade e comunicação, a urbe catalã caminhava a passos largos. Entre 1900 e 30, a população experimentaria um crescimento de quase cem por cento.
A família, parte de uma classe média que prosperava e se expandia, sustentava-se com os proventos da medicina exercida pelo patriarca. Ele, aliás, não tinha dúvidas: desejava que seus filhos seguissem seu exemplo. Entretanto, o futebol entrou no caminho de Ricardo e nunca saiu. Os pais não gostavam de ver o filho se aventurando — e se estropiando — atrás de uma bola. O jovem sabia disso, a ponto de, ainda na infância, mascarar um grave machucado em um dos pés. A ocultação só seria descoberta a partir de um desmaio provocado pela dor. O garoto prometeu não voltar a jogar futebol.
Ainda na adolescência, Ricardo Zamora foi matriculado na universidade. O pai estava determinado a entregar mais um médico à Catalunha. Mas o garoto tinha outros planos. Aos 14 anos, acatou a decisão paterna, mas também passou a integrar o Club Universitari. Em uma época de descobertas, não conseguiu fugir de seu primeiro amor, e entendeu que a defesa da meta seria sua missão de vida.
Conta-se que Joan Gamper, o lendário fundador e presidente do Barcelona, notou as qualidades de Zamora e o incentivou a perseverar no esporte. No entanto, seria Don Josep María Tallada, influente diretor do Espanyol, o responsável pelo destino do garoto. Para desgosto de um pai que não tardaria a entender que não podia lutar contra aquilo. No dia 23 de abril de 1916, diante do Real Madrid, um menino de 15 anos foi escalado para salvaguardar as traves dos Pericos. O titular, Pere Gibert, tinha compromisso mais importante e não pôde ser utilizado. Outros tempos.
Um ofício de alto risco. Para quem?
“Ricardo Zamora tinha escolhido um ofício de alto risco [...] Ele era o pânico dos atacantes. Se olhavam para ele, estavam perdidos: com Zamora no gol, o arco encolhia e as traves se afastavam até perder-se de vista”. Já se vivera a história, quando o uruguaio Eduardo Galeano eternizou essas palavras, em Futebol ao Sol e à Sombra.
Os registros são imprecisos. No entanto, sabe-se que, aos 16 anos, o goleiro já era um referente entre os postes do Espanyol. A evidência cabal disso viria em 1919, quando o treinador inglês Jack Greenwell convenceu a diretoria do Barcelona a tomar aquele talento do rival. Aos 18 anos, com a boina característica, Zamora já alinhava ao lado de outras estrelas, como José Samitier, Félix Sesúmaga e Paulino Alcántara. A primeira coroação viria no ano seguinte.
Madrilenho que encerrara a carreira de atleta no Barcelona, o treinador Francisco Bru chamou Zamora para representar a Espanha nos Jogos Olímpicos de 1920. Aquela competição seria determinante para a formação de uma nova identidade para o futebol hispânico. A Prata alcançada, ainda que em circunstâncias controvertidas, forjou a Fúria.
Os espanhóis arrancaram a premiação no vigor e na disposição físicos. Zamora foi um dos artífices, parando reiteradas vezes os atacantes rivais. Nem sempre lealmente. Em uma espécie de semifinal, dado o arranjo improvisado pela competição, a Itália entrou no caminho. A Espanha triunfaria, mas o goleiro, expulso após quebrar o maxilar de um adversário com um soco, ficaria de fora da decisão. Também começaria a ganhar fama de boêmio quando se descobriu que estava traficando charutos cubanos. Em pouco tempo, a predileção por cigarros (três maços em média ao dia), charutos e conhaque se notabilizaria.
Considerando as performances do goleiro, ninguém estava preocupado com o que ele fazia no seu tempo livre. Em 1920 e 22, conquistou a Copa do Rei. Após a primeira vitória, diante do Athletic Bilbao de Pichichi, o Mundo Deportivo não poupou elogios, ao dizer que “Zamora jogou horrores e se revelou um imenso porterazo”. A segunda seria mais tranquila, 5 a 1, ante os bascos do Real Unión. Porém, a paz da relação entre Zamora e o Barça estava prestes a acabar.
Ciente da própria valorização e status, o arqueiro queria receber o que era uma monta astronômica: 5 mil pesetas. Não houve negociação. O clube negou o pedido, a parceria azedou e, ainda naquele ano, ele já vestia outra vez a camisa do Espanyol. Os Pericos pagaram valores recorde à época. Ao rival, 25 mil pesetas pelo trespasse; já o atleta viu sua pretensão salarial ser atendida. Para compensar os gastos, diversos amistosos eram marcados. O público queria ver Zamora de perto. Assim passaram-se os anos. Até que, em 1930, outro gigante entrou em seu caminho.
Conexão Barcelona-Madrid
Um ano antes, o Espanyol vencera a Copa do Rei, superando o Real Madrid. Na capa do Mundo Deportivo, uma fotografia exibia o goleiro fazendo uma defesa. Na legenda, se lia: “Uma das várias defesas soberbas de Zamora, que se mostrou o único na ‘terra’... como também na água”. A referência era claramente direcionada às péssimas condições do gramado do estádio Mestalla, em Valencia. O sucesso daquela exibição levaria os Merengues a buscar os serviços do arqueiro. Mas não só ele.
Poucos meses depois, Espanha e Inglaterra se enfrentaram no Estádio Metropolitano de Madrid. Aproximadamente 45 mil pessoas acompanharam o que foi a primeira vitória de um país não britânico ante os ingleses. O jogo acabou 4 a 3 para a Fúria. É bem verdade que aquela não seria a jornada mais feliz para Zamora, que cometeu falhas decisivas no encontro. Contudo, mais tarde se saberia que, no primeiro gol da nação insular, Ricardo se chocou com o defensor José María Peña, fraturou o esterno e jogou todo o restante da partida lesionado.
Enfim, em 1930, o Real Madrid quebrou a banca. Um novo recorde foi estabelecido. Os homens da capital movimentaram 100 mil pesetas para tirar Zamora do Espanyol. “Vamos para Madri. Tivemos que transferi-lo”, o goleiro teria ouvido do diretor espanholista, Damián Cañellas.
A iniciativa do Real encontrou, também, a crise econômica dos Pericos. Lucrativa, a transferência recolocou o goleiro como o atleta mais bem pago do país. Mas, também gerou polêmicas. Em uma Espanha ebuliente e em vias de entrar em Guerra Civil, o guarda-metas foi acusado de trair o nacionalismo catalão.
Seja como for, o goleiro triunfou na capital e angariou a idolatria da exigente torcida blanca. Na altura, o Real Madrid buscava seu primeiro título nacional. A competição havia sido criada em 1929, e os três primeiros títulos terminaram com Barcelona (1) e Athletic Bilbao (2). Porém, as mãos safas de Zamora ajudaram a elevar o padrão defensivo madridista.
Em 1931-32, o clube sofreu apenas 15 gols em 18 partidas e conquistou seu primeiro título. No ano seguinte, seriam 17 tentos concedidos e mais um troféu. Seus reflexos e a calma debaixo dos paus eram tudo o que o Real procurava.
Consagração definitiva
As realizações no Real Madrid manteriam o goleiro na seleção espanhola. Seria representando o país que sua lenda se eternizaria. Precisamente em 1934, na Itália. Em um Mundial com 12 equipes europeias, mais EUA, Egito, Brasil e Argentina, só houve disputas de mata-mata. Na primeira rodada, os espanhóis superaram os brasileiros. O 3 a 1 sugere um resultado confortável. Não foi o que aconteceu.
Conta-se que um sujeito disfarçado acompanhou os treinos da Seleção às vésperas da estreia mundialista — em especial uma sequência de cobranças de pênaltis de Waldemar de Brito, no goleiro Roberto Gomes Pedrosa. O desconhecido seria Zamora. E, quando o atacante brasileiro teve a chance de anotar durante o confronto ante os hispânicos, o goleiro rival sabia o que fazer, defendendo a cobrança. “Um pênalti, defendido por Zamora, desencorajou definitivamente os sul-americanos”, narrou o Mundo Deportivo.
Para as quartas de finais, a Espanha viajou a Florença. O encontro prometia as maiores dificuldades, já que o adversário seria a anfitriã. A Itália mussolinista sabia o valor do esporte para fins propagandísticos. Valeria quase tudo para vencer o Mundial, sobretudo em seus terrenos. Era importante mostrar quem mandava ali. Esse tipo de espírito foi visto em campo, no dia 31 de maio. “O habilidoso [Luis] Monti não se furtou a utilizar os mais baixos artifícios, e o goleiro espanhol Ricardo Zamora foi tão castigado que não teve condições de jogar no dia seguinte”, relatou Jonathan Wilson, em A Pirâmide Invertida.
Muito em razão da exuberância de Zamora, aquela partida terminou 1 a 1. Uma nova disputa foi convocada para o dia seguinte. No entanto, combalida, a Espanha precisou fazer alterações na equipe, vindo a ser derrotada pela margem mínima de um injusto 1 a 0. Isso não evitou a eleição de Ricardo para o posto de melhor arqueiro da competição. Foi a partir de então que se criou a alcunha que afamou o goleiro: El Divino.
Ao final de 16 anos de dedicação ao selecionado, o goleiro acumularia 46 jogos. Estes o levariam a passar 45 anos detendo o recorde de aparições pelo país.
No ocaso da carreira, Zamora cometeria falhas esporádicas, que levariam a crítica a questioná-lo. Uma última conquista da Copa do Rei (então conhecida como Copa do Presidente da República), em 1935-36, renovaria seu status.
No dia 26 de junho de 1936, mais uma vez no Mestalla, o Real Madrid se encontrou com o Barcelona. Agora capitão madridista, Ricardo teve a chance de calar seus algozes. O confronto terminou com vitória capitalina. E o 2 a 1 seria garantido na última bola da partida. Por Ricardo Zamora. “Uma defesa de Zamora, daquelas que só Zamora faz, permitiu-lhes manter essa vantagem”, narrou o Mundo Deportivo.
Pouco tempo depois, o futebol seria interrompido pela Guerra Civil. Era o fim da linha para Zamora no futebol espanhol. Brevemente, ainda vestiria a camisa dos franceses do Nice. Mais tarde, seria treinador, com pouco sucesso. Não que precisasse: já era o primeiro grande ídolo da história hispânica e nada mudaria isso.
Ainda assim, para preservar a história do ídolo junto às novas gerações, em 1959, o diário Marca instituiria o Troféu Zamora. A cada ano, o goleiro menos vazado de La Liga é agraciado com o prêmio. Ao final de cada temporada, o mundo se lembra que não haverá outro como Ricardo Zamora, falecido em 1978. Como popularizado nos anos 1920, o que a Espanha precisava para encontrar o sucesso era ter “São Pedro no céu e Zamora na terra”.
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