Auto da Barca do Inferno/O Judeu
<poem> Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz: Que vai cá? Hou marinheiro!
Dia. Oh! que má-hora vieste!...
Jud. Cuj'é[1] esta barca que preste?
Dia. Esta barca é do barqueiro.
Jud. Passai-me por meu dinheiro.
Dia. E o bode há cá de vir?
Jud. Pois também o bode há-de vir.
Dia. Que escusado passageiro!
Jud. Sem bode, como irei lá?
Dia. Nem eu nom passo cabrões.
Jud. Eis aqui quatro tostões e mais se vos pagará. Por via do Semifará que me passeis o cabrão! Querês mais outro tostão?
Dia. Nem tu nom hás-de vir cá.
Jud. Porque nom irá o judeu onde vai Brísida Vaz? Ao senhor meirinho apraz? Senhor meirinho, irei eu?
Dia. E o fidalgo, quem lhe deu...
Jud. O mando, dizês, do batel? Corregedor, coronel, castigai este sandeu! Azará[2], pedra miúda, lodo, chanto[3], fogo, lenha, caganeira que te venha! Má corrença que te acuda! Par el Deu, que te sacuda coa beca nos focinhos! Fazes burla[4] dos meirinhos? Dize, filho da cornuda!
Par. Furtaste a chiba[5], cabrão[6]? Parecês-me vós a mim gafanhoto d'Almeirim chacinado em um seirão[7].
Dia. Judeu, lá te passarão, porque vão mais despejados[8].
Par. E ele mijou nos finados n'ergueja de São Gião!
E comia a carne da panela no dia de Nosso Senhor! E aperta[9] o salvador, e mija na caravela!
Dia. Sus, sus! Demos à vela! Vós, Judeu, irês à toa, que sois mui ruim pessoa. Levai o cabrão na trela!
Vocabulário
- ↑ de quem é
- ↑ desgraça
- ↑ pranto
- ↑ zombaria
- ↑ cabra
- ↑ cornudo
- ↑ uma versão alternativa seria: "carrapato d'Alcoutim/enxertado em camarão."
- ↑ vazios
- ↑ afronta
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